sexta-feira, 30 de setembro de 2016

“A pessoa com deficiência na minha história de vida”



“A pessoa com deficiência na minha história de vida”

Quem é a pessoa com deficiência na minha vida? Eu mesma!!  Nasci ouvinte e conversava normalmente, mas como resultado de uma enfermidade adquirida na infância (sarampo) fui acometida de surdez profunda do ouvido direito e parcial do esquerdo. Por ser deficiente auditiva oralizada, não fui inicialmente aceita na Comunidade Surda, mesmo depois de aprender a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Esta questão da comunicação sendo minoria dentro de uma comunidade ouvinte é uma das razões por procurar formas e estudos que viabilizem pontes onde encontramos barreiras de comunicação.
        Por minha condição oralizada, sempre consegui participar de ambas as comunidades, Surda e ouvinte. O interessante é que, mesmo tendo resíduo auditivo, me sinto mais confortável me comunicando via LIBRAS com os Surdos, que entre ouvintes, dialogando normalmente em português.
           Enquanto Surda, me descobri parte de uma comunidade dividida por fatores instrísecos à própria comunidade ou por fatores externos a ela onde a descriminação da condição de não ouvir, estabelecia por parte da Comunidade ouvinte, estabelece diferenciações por critérios de definição que são questionados pelos Surdos.
           Existe uma necessária observação referente à alteridade Surda, pois ela perpassa a construção de cada trabalho que aborde a importância de um lugar no mundo, de uma comunidade que como as outras guarda características específicas e como toda especificidade exige uma atenção e reposta específica.
        
                 A análise sociantropológica, concebe a surdez como uma experiência visual (Skliar,1999). Segundo Skliar, a experiência visual não se restringe apenas à uma modalidade de produção e compreensão especificamente linguística ou singular de processamento cognitivo, mas que se traduz em significações diversas, representações e/ou produções do Surdo, seja no campo intelectual, linguístico, ético, estético, artístico, cognitivo, cultural etc.
           Faz-se necessário, então, um modelo no qual o déficit auditivo não cumpra nenhum papel relevante, um modelo que se origine e se justifique nas interações normais e habituais. Já é tempo de entender a necessária adoção de um modelo que alcance a necessidade específica da educação de pessoas surdas, de forma integral porém, mediada por uma aquisição de língua e linguagem que permita ao Surdo desenvolver toda sua potencialidade pedagógica pois não ouvir não restringe a capacidade do Surdo de aprender. O que impele o Surdo à condição de semi-analfabetismo ou analfabetismo funcional (em Língua Portuguesa) é a distância entre sua língua materna quando este é alfabetizado em LIBRAS e a obrigatoriedade em ler e escrever fluentemente em Língua Portuguesa quando esta não é sua língua materna.
         Esta distância é tão injusta quanto defender que os ouvintes, a partir de amanhã, tenhamos que escrever em uma segunda língua. Da qual não tenham total domínio. O que aponta para a urgente necessidade de perceber a identidade pedagógica do publico Surdo e assumir a identificação sociocultural do Surdo para que, como defende o autor,  o modelo pedagógico não seja uma obsessão para corrigir o déficit mas a continuação de um mecanismo de compensação que os próprios surdos, historicamente, já demonstraram utilizar. (Skliar, 1997, p. 140).
       Enquanto Surda, que manipula LIBRAS e Língua Portuguesa exerço constante malabarismo que exige um esforço ao quadrado para estar simultaneamente participando de ambas as comunidades.  É preciso pressupor a dualidade nesta realidade pois, participar de duas formas de interação comunicativa,  e não conseguir definir minha alteridade em nenhuma delas pois existe uma exigência simultânea para que eu responda à cada uma delas e às duas ao mesmo tempo e a contento.
         Enquanto Surda, me sinto honrada em fazer parte de uma comunidade inserida numa comunidade maior e majoritariamente ouvinte pois, é um desafio abstrair do silêncio  a interação num ambiente predominantemente baseado na comunicação áudio-visual requer por parte do Surdo a capacidade de manipular a linguagem e a língua (seja escrita, de sinais ou portuguesa) de forma a interagir de maneira dinâmica e desafiadora de um contexto que não facilita a inserção das minorias.
         Quando ingressei na Comunidade Surda fiquei surpresa ao perceber que existem diversas denominações para as pessoas que não ouvem. Existem diversas denominações e termos que variam de Surdos[1], surdos, ouvintes, surdo oralizado, surdo puro e Deficiente Auditivo (DA). Tantas formas de ser percebido só reafirma que a alteridade e identidades surdas estão à revelia das esteriotipações, realizando-se de indivíduo a indivíduo que antes de ser Surdo, é pessoa dotada como qualquer outra do direito de ser e ser livre de rotulações que lhe prive de autodeclarar-se como entende e não como é percebido.
             Minha história não tem sua base na surdez, mas na forma de abstrair dela meu lugar enquanto Pessoa com Deficiência (PcD) sem porém perder de vista que minha condição de não ouvir não me desfavorece se meu direito de desenvolver meus direitos enquanto cidadão não forem deficientes.
           Importa ressaltar que meu breve histórico, objetiva calçar de defesa de um método que permita ao Surdo ser protagonista de sua história e não estar à mercê da decisão de um sistema que não compreende a formação de alunos surdos sem atentar ou respeitar porém suas particularidades de aprendizagem.
          Embora não tendo consciência do que significava ser surda, desde criança eu já tinha habilidade em ler lábios, destreza desenvolvida pela própria condição. Foi na sala de um Otorrino, quando já tinha onze anos, que descobri que os ouvidos de alguns funcionam e de outros não.
          Esta consulta separou minha vida em dois momentos, antes e depois de saber que eu era surda e estava encontrando tantas dificuldades na aprendizagem por não conseguir ouvir. E, pela primeira vez tomei conhecimento que eu não era a única pessoa surda no mundo mas...onde estariam as outras?
          A surdez foi um dos desafios, pois após a primeira infância em franco desenvolvimento fui acometida de uma febre alta por vários dias não diagnostica a causa. Após a insistência da febre por dois meses, foi ministrada uma medicação para um sarampo que estava recolhido, foi então que a febre passou. Porém várias sequelas, dentre elas a surdez, me fez descobrir desde cedo que, quanto maior o obstáculo, mais aguerridos nos descobrimos.

                  Após seis meses de cama, retrocedi em meu desenvolvimento, não andava e nem sentava mais, voltei a usar fraldas, chorava muito por causa de dores nas pernas. Meses de tratamento recuperaram minha estabilidade física e habilidade de caminhar. Na primeira série, mal conseguia acompanhar os demais alunos, o que resultou numa aprendizagem fragilizada e superficial.
                 No ano seguinte, já em sala especial com outras crianças deficientes conseguia acompanhar melhor. No momento em que fui diagnosticada com surdez, já estava repetindo a terceira série mas já numa sala regular, mas reclamava muito pois  não conseguia acompanhar, pela dificuldade em ouvir.
Neste momento em que eu finalmente recebia um diagnóstico contundente sobre minha condição sensorial, descobri que eu não estava sozinha, pois se o médico citou a importância de estudar numa escola especial para surdos, então havia mais surdos!  
Justifico este breve testemunho pois, quando se define os rumos da educação de uma criança surda, está se definindo o contexto de toda sua formação. No meu caso, como já era oralizada e desconhecia sequer a existência da LIBRAS, o médico aconselhou a permanência na escola regular.
          Naquele contexto, as próteses auditivas eram ainda muito precárias e a insistência na minha permanência na escola regular, um atraso significativo, gerado pela dificuldade de apreensão apropriada dos conteúdos. A baixa produtividade qualitativa resultou numa sequência de retenções.
        

           Apenas quando cognitivamente minha particularidade sensorial foi respeitada e considerada como fator primário na condução de minha aprendicagem é que iniciou-se da fato minha alfabetização.
          Fui matriculada numa sala para crianças especiais e neste ambiente onde eram ensinadas crianças com diferentes particularidades é que comecei a entender de fato a língua portuguesa. A sala atendia vários perfis de dificuldade sensorial e mental. E, foi neste contexto que encontrei o start de minha alfabetização.
         Este momento em minha trajetória, comum a de tantas outras crianças surdas, reiteram a urgente necessidade de se ater às particulares necessidades de aprendizagem que precisam ser expressamente consideradas desde o ingresso da criança na escola.
          O atraso nesta percepção causa sérios prejuízos à aprendizagem, alteridade e a formação global de qualquer pessoa, independente de seu nível de dificuldade, particularidade ou deficiência.
        
          Em casa, lia os livros do meu irmão mais velho, embora sempre perguntado as dúvidas para minha mãe que foi como uma segunda professora para mim.
          Sempre gostei de ler e na minha infância, não tinha muitos amigos, a maioria nem sabiam o meu nome, assim, chamavam-me de ‘Menina quietinha’. Já na quarta série, comecei a frequentar a biblioteca da escola onde passava horas lendo sozinha. Cheguei a fazer uma lista e, na oitava série, já tinha lido mais de 100 livros. Gostava de mergulhar nas histórias das quais ainda me vêm à memória: Xisto no espaço; A ilha perdida; Meu pé de laranja lima; Meu pé de feijão; O menino e o porquinho; O pequeno Polegar; Poliana Menina; Poliana Moça; Memória póstuma de Brás Cubas; A casa verde etc. Difícil esquecer minhas melhorares companhias, afinal livros não fazem acepção de pessoas e nos comunicávamos sem problemas.
         Na década de 90, descobri num anúncio no jornal sobre um curso de computação para Surdos. Lá encontrei outras pessoas na mesma condição sensorial que a minha mas não na mesma condição de comunicação. Fiquei estupefada!  Descobri que os Surdos se comunicavam com as mãos. O Professor ouvinte explicava através do trabalho de uma intérprete. Como não conhecia LIBRAS, não conseguia acompanhar a intérprete, então solicitei ao professor que falasse de frente para mim e assim, consegui acompanhar o curso.  
              Uma nova descoberta me fez sentir duplamente à deriva. Não estava inserida na comunidade ouvinte por não ouvir bem, nem tampouco da comunidade Surda por não saber LIBRAS.  Procurei então a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos - FENEIS-SP, onde deu-se início minha caminhada rumo à autonomia!
               Comecei a aprender LIBRAS no curso básico, depois o intermediário e me apaixonei. Na época os materiais eram muito simples e aprendia os sinais soltos sem contextualização. Não existia vídeos de apoio como atualmente, nem tanta disponibilidade de apontamentos de classificadores e outras variáveis de construção do conhecimento linguístico da LIBRAS.
               Diferente dos ouvintes aprendizes de LIBRAS, eu encontrei mais facilidade (dada até por minha própria condição sensorial) quanto às expressões faciais e classificadores.
               Inserida agora na zona entre Surdos e Ouvintes, descobri agora em contato com os Surdos que a diferença não residia apenas na questão sensorial mas na separação entre grupos. Era frequentemente questionada por outros surdos se eu era Surda ou Deficiente Auditiva e ‘acusada’ de gostar de ouvintes...como se gostar deles fosse um problema. Logo fui categorizada como Deficiente auditiva e instruída a não me autodenominar de surda pois transitava entre as duas realidades.
          Ou seja...eu não era propriamente ouvinte nem propriamente Surda. Residia na berlinda das comunidades que marginalizavam, cada uma à sua maneira àqueles que não se apropriavam de suas particularidades.
                    Considerando-se que a ideia de comunidade apoia-se na presença de vínculos simbólicos que congregam sujeitos, congregando interesses comuns e propostas coletivas, os estudos Surdos contemplam a disparidade entre o forte laço que aproximam pessoas com mesmos aspectos sensoriais ao mesmo tempo que apontam a distinção realizada pela própria comunidade de pares que por adotarem opções diferentes da LIBRAS para adoção de comunicação, se restringem e sofrem diferenciações.
                Autores como “Lane, Hoffmeister e Bahan (1996) descartam ‘comunidade surda’ por considerarem muito inclusivo e preferem a expressão ‘mundo surdo’, restringindo-o apenas àqueles que usam a língua de sinais e se identificam com a cultura surda” (MAGNANI, 2007, p. 3)
                 Descobrir-se Surda numa comunidade majoritariamente ouvinte foi um desafio gigantesco, mas residir num espaço entre as comunidades que não conseguem ‘dialogar’ de forma a dirimir os preconceitos extrínsecos e intrínsecos é devastador.
 Portanto ainda enfrento o desafio de descobrir como trabalhar com pessoas com múltiplas deficiências, pois durante os últimos cinco anos trabalhei com crianças surdas e cegas, surdas e autista, paralisia cerebral e outras.


[1] * os “Surdos” com s maiúsculo, portanto, são aqueles formadores de uma entidade linguística e cultural. Sacks (1998, p. 16)

Um comentário:

  1. Lucia, fiquei emocionada com sua história, imagino quantos momentos solitários ,mas sobreviver e ser feliz foi sua resposta, você encontrou seu lugar, parabéns.
    Maria Bergamaschi
    abs

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